VALENTINA * LOXY

quarta-feira, março 12, 2003

Meu irmão
Meu irmão é um sujeito ímpar, do tipo que não se consegue ser imparcial a seu respeito.
Desde criança me acostumei aquela figura estranha ao meu lado e lá se vão quase 24 anos.
Quando pequeno preferia os livros a brinquedos, nunca gostou de futebol e tinha a mania de desmontar qualquer eletrodoméstico que encontrasse “dando sopa” a sua frente.
Brigávamos muito, e como: eram tapas, chutes e pontapés, perco a conta de quantos copos de Nescau derramou na minha cabeça.

Meu irmão é um sujeito ímpar de sensibilidade que poucas vezes vi em alguém. Gosta de artes, música erudita, chá e qualquer quinquilharia a que se possa chamar de antiguidade.
Nas férias, gostávamos de ficar conversando até o dia amanhecer. Muitas vezes o barulho e o riso alto nos denunciava e logo após levar um pito tinhamos que ir para a cama, com uma vontade louca de continuar a conversa.
Me lembro da briga de lixo com as vizinhas, dos teatros de papel e luz que fazíamos na garagem e das músicas que cantávamos no carro durante as viagens com o resto da família.

Meu irmão é um sujeito ímpar, inteligente como ele não conheço. Fala de qualquer assunto que se possa imaginar em português, inglês e francês e se houver oportunidade até em espanhol é capaz ele falar.
Sempre tirou boas notas e sabe de cor parágrafos inteiros dos seus livros preferidos.

Meu irmão é um sujeito ímpar, pessoa difícil de se conviver. Gosta de deitar em cima da gente e ocupar quase a cama toda, adora provocar as pessoas, usar a toalha dos outros e deixá-la molhada no banheiro.
É capaz de devorar uma boa compra de supermercado em questão de segundos e para tirar uma pessoa do sério não precisa mais que isso também.
Gosta de teorias que esquece de praticar, e faz questão de te lembrar todas as suas limitações e defeitos quando você menos precisa que ele o faça.

Meu irmão é um sujeito ímpar, e vai embora daqui a poucos dias. E logo eu que estava tão feliz: vou "herdar" o quarto, os equipamentos eletrônicos e o carro agora me sinto assustada, porque não sei como vai ser a vida sem ele.
Estou com o coração apertado porque ao me lembrar da pessoa mais chata que já conheci, me lembro também da mais adorável, da gargalhada estridente que me faz rir toda vez que a escuto, das conversas longas, que agora não terei mais.

Meu irmão é um sujeito ímpar e sempre esteve ao meu lado quando dele precisei: me carregou até a enfermaria quando cortei o pé na garrafa escondida na piscina, dormiu ao meu lado e me consolou, mesmo sem muito jeito quando eu chorei de susto e de medo por causa da primeira menstruação e quando acordei na enfermaria do João XXIII, foi ele a primeira pessoa que vi.

A vida é mesmo engraçada, e vai nos separar logo agora. Agora que consigo ama-lo com seus defeitos e qualidades, que gosto das conversas durante o almoço e e também quando deitados no quarto, ele insistindo em deitar a cabeça em mim e eu relutando em não deixar, quando sinto que seria muito melhor se ele fosse ficar.
Eu e meu irmão somos como gato e cachorro, mas uma certa cumplicidade sempre nos uniu.
Vou sentir muita saudade desse sujeito ímpar que é o meu irmão.